domingo, 6 de março de 2011

Paul McCartney - "Up and Coming Tour" (São Paulo, Brasil)


      Por trás dos cabelos longos e bigode, ele está a olhar para baixo, a observar algo fixamente. É surpreendido pela chegada do companheiro, que possui cabelos ainda mais longos que quase escondem os óculos de aro fino. O recém-chegado senta-se ao lado do amigo, olhando para baixo e apertando os olhos devido à miopia. Após alguns segundos, pergunta:
      – Ele já entrou no palco?
      – Já. Está a tocar há alguns minutos – responde o amigo.
      – Onde é?
      – No Brasil. Em São Paulo, acho eu.
      – Está cheio?
      – Muito.
      O de óculos permanece em silêncio alguns segundos, a tentar captar o som que vem de baixo, de longe.
      – O que é que ele está a tocar agora? Jet?
      – Acho que sim, não dá para ouvir direito por causa da gritaria. Mas acho que sim.
      – Eu gosto desta música.
      – Ele está a falar com a plateia, mas não consigo entender nada.
      – Acho que é português. Não dá para ouvir direito, o público não deixa.
      – Connosco também era assim. Lembraste no Japão? Ninguém ouvia nada.
      – Olha! All My Loving!
      Ambos começam a bater as mãos no joelho, de forma quase inconsciente, a acompanhar o ritmo da música. “I’ll pretend that I’m kissing…”, o de bigode canta baixinho.
      – George! Ainda te lembras da letra!
      – Como é que me poderia esquecer? Aposto que também te lembras.
      – Eu lembro-me de todas. Todas as músicas. Todos os versos.
      – Ele ainda está afinado, não está?
      – Ele sempre cantou muito bem. Desde menino, ele sempre cantou bem.
      Ficam em silêncio mais um pouco, a olhar para baixo atentamente.
      – Qual é agora? Drive my Car
? A plateia está a fazer muito barulho.
      – Drive my Car.
Essa é quase toda dele, sabias? Eu apenas o ajudei em alguns trechos.
      – Está no Rubber Soul, não é?
      – Acho que sim. Sim.
      – A plateia está a cantar a música inteira.
      – Como eles sabem a letra? Eles ainda nem eram nascidos quando lançamos isso.
      – Não sei… Mas eles estão cantando a música inteira, John. Dá para ver daqui.
      Permanecem em silêncio por mais algum tempo. O de óculos, mesmo sem perceber, balança a cabeça para os lados discretamente, ao som da música.
      – Ele foi para o piano.
      – Eu nunca entendi como é que ele sabia tocar tantos instrumentos. Isto não é normal.


      – Qual é a que ele está a tocar agora? The Long and Winding Road?
      – Sim.
Olha! As pessoas estão a chorar!
      Afastando os cabelos do rosto, o míope aperta ainda mais os olhos, vasculhando a multidão.
      – Não gosto desta música – diz ele, mais para si mesmo do que para o amigo.
      – É linda. Ninguém conseguia fazer baladas como ele.
      – Mas não gosto. Nós mal nos falávamos nessa época.
      – Acontece. Acontece com todo mundo, por que não iria acontecer connosco?
      – É verdade.
      – Ele está a tocar as nossas, olha. Antes foi And I Love Her. Agora é Blackbird.
      – Eu não acredito que as pessoas ainda cantam com ele, depois de tantos anos… A letra não está a aparecer no telão? – pergunta o de óculos, abaixando-se ainda mais para tentar ver o palco.
      – Não, elas sabem mesmo. Dá para perceber daqui.
      – Ele disse o meu nome?
      – Sim. Você sabe qual ele vai tocar. Ele escreveu para você.


      – Estás bem, John?
      – Eu e ele perdemos muito tempo. Hoje eu sei disso.
      – Eu sei.
      – Sabe, George… Se nós soubéssemos que eu teria tão pouco tempo, talvez nos tivéssemos comportado de outra maneira.
      – Talvez não. Vocês sempre foram melhores amigos. Ele sabia disso. Ele faz questão de cantar essa, todos os concertos. E ele sabe que estás a vê-lo. Ele não canta para a plateia, ele canta para ti. É a forma que ele encontra de matar um pouco a saudade.
      – Será?
      – Sim. Eu senti muito a tua falta antes de nos reencontramos. Olha as pessoas lá em baixo, estão a soluçar. Todos sentem tua falta.
      – Eu sinto muito a falta dele. Eu sinto muita saudade dos Beatles. Especialmente do começo. Lembra da Alemanha?
      – Nós ainda éramos uns meninos… Tudo era o máximo, tudo era novidade. Nós éramos novidade.
      – Nós ainda somos novidade. Olha, esta é tua!


      – Eu lembro-me de quando a escrevi. Era difícil escrever algo com vocês lá.
      – Esta música é linda.
      – Olhe! No telão! Ele colocou uma foto minha!
      – Nós gostávamos muito de ti. Eras o mais novo, víamos-te como uma espécie de irmão mais novo.
      – Eu sei – concorda o de bigode, rindo alto.
     Esperam em silêncio a plateia aplaudir. Ao final da música, ambos estão visivelmente emocionados, cada qual com suas lembranças. Os acordes de uma nova canção parecem despertá-los.
      – Eu gosto desta!
      – Esta é dele, não é nossa.
      – Band on the Run? Mas poderia ser nossa.
      – Se dependesse de mim, seria.
      – Ah, sim. De todos nós, sempre foste o mais roqueiro, esta música é a tua cara.
      – Ele fez muita coisa boa, não é?
      – Sim.
      Enquanto o de óculos bate os dedos no joelho, o de bigode, sentado de pernas cruzadas transforma sua própria coxa no braço de uma guitarra imaginária. Ambos parecem distantes, talvez pensando não no que foi, mas no que poderia ter sido.


      Enquanto o de bigode tamborila os dedos no ritmo, o seu amigo tira os óculos rapidamente. Está a chorar.
      – Choras sempre nesta música.
      – Foi uma das últimas que escrevemos juntos. Mesmo separados. Metade é minha, metade é dele. É estranho, hoje, vê-lo a cantar a minha parte, e eu aqui.
      – Ele não está a cantar sozinho.
      – Como não?
      – Olhe o estádio. É uma voz só, uma voz de sessenta mil pessoas.
      – O que são aquelas coisas brancas? Balões de gás?
      – Sim.
      – Como fica bonito, a ver daqui de cima.
      – Espera… Give peace a chance? Isso não era da música, certo?
      – Não.
      – Isso é teu!
      – Sim.
      – O estádio inteiro está a cantar! Olha os balões de gás! As pessoas estão a chorar, a abraçar-se.
      O de óculos resmunga um palavrão, sorrindo. Os seus óculos estão embaçados, molhados de saudade.
      – Let it be. Esta não poderia faltar.
      – Eu não me conformo com isto, com as pessoas ainda saberem as letras inteiras.


      – Eu gosto desta também.
      – Uau! Viste aquilo, John? São fogos?
      – Ficou espectacular, não é?
      – Nós não tínhamos isso no nosso tempo.
      – Nós não precisávamos.
      – Mas ele também não precisa. Mesmo assim, ficou lindo.
      – O que é que as pessoas estão a cantar agora?
Hey Jude?
      – Sim… Estão abraçadas, a cantar com ele.
      – É engraçado, George… Eu sei que nós éramos bons… Mas acho que nunca entendi a importância que temos na vida das pessoas, até pouco tempo atrás. Quando eu assisto aos concertos dele, e vejo as pessoas a cantar com ele, chorando… Mexe muito comigo
      – Nós éramos bons, John. Tu sabes disso.
      – Aparentemente, ainda somos. As pessoas ainda…
      – Ainda o quê?
      – Sabes, eu estava errado.
      – Ah?
      – Quando eu disse que o sonho acabou. Eu estava errado.
      – Nós três sempre soubemos disso, que estavas errado. Sempre falaste demais. Lembras-te aquela confusão de sermos maiores do que Jesus?
      – Sim… Mas o sonho… O sonho nunca acabou. Eu errei.
      – John?
      – Sim?
      – O sonho nunca vai acabar. Não enquanto as pessoas se lembrarem. E elas vão se lembrar para sempre.
      A sorrir, John Lennon levanta-se e oferece a mão a George Harrison.
      – Estás com a tua guitarra?
      – Eu estou sempre com minha guitarra, tu sabes.
      – Vamos tocar um bocado?
      – Qual?
      – Uma qualquer. Fiquei com saudades.
    
      Milhões de quilómetros abaixo, Paul McCartney, emocionado, agradece à plateia.




George Harrison & John Lennon


 
Um Pequeno Aparte...
 
 
 

2 comentários:

  1. Podias ter posto alguma coisa do Ringo Starr :DD
    Mas mesmo assim o teu Blog continua a ser um espectáculo...!
    Já viste o teu Blog já foi visto por 620 pessoas em todo o Mundo :)
    Já és famosa!!!

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  2. Obrigada! Não te preocupes que o Ringo Starr já tem um post reservado só para ele ;)
    E mais, já tenho UMA visualização no Reino Unido... Aim da Quingue ófe da Uorlde!

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